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Thursday, April 27, 2006


Amor, instante final

Contudo te ter sem nada é te ter
Sem te ter contudo.
Sem razão, sem culpa,
Sofrendo minha culpa sem razão.

Ninar teu sono, sem razão nenhuma,
Somente ninar.
Sem te ter,te ter,
Traído, desejo um desejo ou cem.

Angústia dos desejos mal vividos,
Verdadeira angústia.
Tola hemorragia,
Que me deixa tinta esta face tola.

Morrer sofrendo a dor de desejar,
Sem te ter, morrer.
Instante final,
Deste amor (mal) vivido em um instante.

* Este foi o primeiro poema meu que a métrica deu certo. Alias, espero que tenha dado.

Tuesday, April 11, 2006





Luto



“(...) a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor”. (Edgar Allan Poe)


A casa era extensa e se fechara há muitos dias perdidos e noites rangidas, enclausurando aquele homem tal qual um caixão. Suas paredes abafadas e esmagadoras esbofeteavam, incessantes, o corpo de alma machucada que ali se escorava contra a morte e contra o não. Cirozinho: o seu nome de rosto doído e roto. Um diminutivo, um diminuto homem algemado por seu luto sem luta e sua viuvez abrupta.

Quisera morrer fisicamente diante das flores no túmulo de Tânia, mas só conseguira suicidar o próprio espírito, e restar inerte e fúnebre naquela casa lamuriosa. Era dela o corpo esbranquiçado dentro da cova, mas era nele que se decompunha, lívida e vagarosamente, com sabor forte de berro atrofiado.

A cozinha era pequena e não o deixava sair, asfixiado num constante e impetuoso nascer torto de angústia. Baratas e formigas fluíam felizes de tanta destruição e sujeira. Seu conjunto inócuo se arrastando pelo piso frio sem conseguir levantar, alastrando o cheiro azedo impregnado em sua pele. Quisessem restos, pegassem os dele, que virara pura tristeza e podridão. Não levantaria, levassem todas as sobras que ele era.

Ousou tocar o cabelo imundo, e a caspa caiu-lhe sobre as mãos, aos borbotões, assim como as lágrimas sempre incessantes. Aquela mistura asquerosa. Esgotado de gritos, ele agora apenas soluçava e gemia.

Ai! Ai dos seus olhos agora miúdos, diminuindo com a lástima e a miséria, cansando e doendo sem resposta. Ai do seu nariz curvo como pergunta, erguendo-se para o teto pensando ser céu, buscando nenhuma oração, ardendo de toda invencível desgraça. Ai, maldito Poe, arrancasse dele o corvo agourento que insistia em lhe bicar e ecoar toda a perda de Tânia; quem sabe, assim, o pobre pudesse dormir ao menos uma noite de paz!

Nada de preto no traje, que na escuridão ele já se transformara, e ela se agarrara feito musgo até em seus músculos. O ponto mais intrínseco de sua alma vestia era um verde muito estático, pasmo de qualquer reação.

Comessem com urgência os seus restos e o seu rosto, pois ele mais nada queria sem ela. Sobrava como um homem esquartejado, de entranhas putrefatas e riso raso de tão vago. Perdido e parco, diante dele somente eco havia: da sua dor, da sua voz rasgando-se em frêmito, toda oca, louca de tudo, rouca de morte.

(10 de abril de 2006)